vendredi 18 octobre 2013

Paulo Abrunhosa

Diário de um Dromedário Paulo Abrunhosa. Desenhos de PAM (Paulo Anciães Monteiro)) Quasi Edições 2001

1958 - 2001

Nasceu a 12.05.1958, no Porto. Nesta cidade, faz a primária e parte do secundário no extinto Colégio João de Deus, de onde sai para frequentar o Liceu António Nobre e aí concluir, em 1979, o curso complementar. Depois de cumprir o serviço cívico obrigatório, matricula-se, no ano seguinte, na Universidade de Coimbra. Em 1985 licencia-se em Direito, tendo, de seguida, iniciado o estágio para a advocacia, que não conclui. Avesso a todo o "establishment", recusa alinhar com as gerações engravatadas do seu tempo. Em 1987 funda, em colaboração com seu irmão Nuno, a revista "Metro", a primeira de distribuição gratuita em Portugal. Com o número especial dessa revista, publicado no Verão de 1994 e exclusivamente dedicado ao Algarve, vence, nesse mesmo ano, o 1." Prémio da Imprensa" da Região de Turismo daquela Província. Entretanto, entre a escrita e a noite, é convidado a dinamizar o espaço Café da Praça, promovendo aí iniciativas únicas de carácter lúdico e cultural, mormente entre as novas tendências da música de dança, marcando de forma indelével uma certa boémia da cidade. A morte apanhou-o aos quarenta e três anos de idade, no auge das suas capacidades, não lhe tendo consentido concluir este trabalho, cujos prefácio e epílogo deixou incompletos.

Paulo era um príncipe da palavra, alguém que se deslocava entre a suavidade das nuvens e a tempestuosidade da certeza com que se batia pela sua visão do mundo Não era fácil ser o seu irmão mais novo, mas com que saudade recordo as discussões que mantínhamos e nas quais eu me afundava numa sensação de pequenez e ignorância Batalhou até ao fim, numa coerência ímpar que a mais • ninguém conheci. Imperturbável no seu sobretudo branco, que lhe assentava como um manto real, o Paulo viveu de acordo com as suas próprias regras, das quais este livro é, apenas, mais um capitulo surpreendente. Uns olhos transparentes de bondade e luz, uma criança feliz embalada pelo carinho que devotava a todos quantos tiveram o privilégio de consigo privar, as mãos longilíneas que abraçavam o tempo com a firmeza delicada com que prendia uma cintura de mulher, o chá' tomado a altas horas da manhã, entre sonhos adiados e memórias de uma vida plenamente preenchida. Era assim o Paulo que, em tudo quanto tocava, deixava • um pouco de si e revelava inesperadamente o melhor de todos nós. Partiu tão depressa quanto viveu, sem deixar que nos despedíssemos com os beijos que tanto ' gostava de dar. Levou consigo a música que lhe habitava a alma, como se quisesse adiar o adeus, a última palavra que gostava de pronunciar. Irónico como sempre o Paulo privou-nos do nosso destino de irmãos, de nos sentarmos numa qualquer, tarde soalheira de Setembro, na fresca sombra das figueiras da Tapada fumando um cigarro impossível, entre histórias fantásticas e risos que lhe escondiam as lágrimas de um coração maior de que a terra que pisava. Como tanto gostava teve a palavra final, ou porventura ter-se-á levantado de mesa para ir jà ali e voltar talvez amanhã, quem sabe depois, no seu conceito infinito de tempo, sabendo que o aguardamos com a tranquilidade da espera que votamos aos anjos.

Pedro Abrunhosa Porto, 16 outubro 2001

Paulo était un prince du verbe, quelqu'un qui se déplaçait entre la douceur des nuages et les rafales de la certitude avec laquelle il se battait pour sa vision du monde. Ce n'était pas facile d'être son frère cadet , mais avec quelle nostalgie je me rappelle les discussions que nous maintenions et dans lesquelles je me noyais dans une sensation de petitesse et d’ignorance. Il s’est battu jusqu'à la fin, dans une cohérence unique que je n´ai connue chez personne d´autre.. Imperturbable dans son pardessus blanc, qui lui tombait comme un manteau royal, Paulo a vécu conformément à ses propres règles, dont ce livre est à peine un chapitre surprenant. Des yeux transparents de bonté et de lumière, un enfant heureux bercé par l'affection qu’il consacrait à tous ceux qui ont eu le privilège de le connaître en privé, les mains longilignes qui étreignaient le temps avec la fermeté délicate avec laquelle il prenait une taille de femme, le thé pris aux hautes heures du matin, entre des rêves reportés et des mémoires d'une vie pleinement remplie. Il était ainsi Paulo, dans tout ce qu’il touchait, il laissait un peu de lui et se révélait inopinément le meilleur de nous tous. Il est parti aussi vite qu’il a vécu, sans nous laisser lui dire adieu, avec les baisers qu´il aimait tant donner. Il a emporté avec lui la musique qui habitait son l'âme, comme s’il voulait reporter son adieu, le dernier mot qui aimait prononcer. Ironique comme toujours, Paulo nous a privés de notre destin de frères, de nous asseoir par une quelconque après midi ensoleillée de septembre, à l’ombre fraîche des figuiers de la prairie, en fumant une cigarette impossible, entre des histoires fantastiques, des rires qui cachaient les larmes d´un cœur plus grand que la terre qu´il foulait.. Comme il aimait tant, il aura eu le dernier mot, ou par hasard se sera-t-il levé de table pour aller là bas et revenir demain peut-être, qui sait plus tard, dans sa conception infinie du temps, sachant que nous l’attendons avec la tranquillité de l’espérance que nous vouons aux anges.

Pedro Abrunhosa le 16 octobre 2001

EU

Ao espremer a memória

à procura da história

que fosse um relato,

mais ou menos exacto,

daquilo que eu sou,

o que me sobrou

foi a evidência

de que a minha existência

é um enigma,

o paradigma

de uma grande incerteza.

Qual é a natureza

do meu personagem?

Serei só a imagem?

Um ser virtual?

Ou sou mesmo real?

Será que eu existo

e sou filho de Cristo?

Ou poderei eu ser Ele,

só que noutra pele?

E se eu for uma lesma?

Existo na mesma?

Seja lá o que eu for,

a verdade é que a dor

de não saber o que faço

faz de mim um palhaço.faz de mim um palhaço.

Serei um fala-barato?

Um sacana de um chato?

Alguém importante?

Ou um grilo falante,

de consciência pesada

e sem nenhuma piada?

Viverei esta vida

que me é tão querida,

sem nenhuma razão?

Ou serei um peão

de um destino com nexo?

E qual é o meu sexo?

Sou uma mulher,

uma fêmea qualquer?

Ou um homem sem cio,

em nome do brio?

Afinal, quem sou eu?

Um fariseu?

Uma pessoa decente?

Um docente doente,

meio pedófilo?

E se eu for germanófilo

e com tendências nazis?

Ou um juiz infeliz

que decide ao acaso?

E um soldado raso?

E um rato de esgoto,

uma espécie de arroto,

em forma de escroque,

sem ter rei, nem ter roque?

Serei eu mongolóide,

ou um asteróide

a riscar o Universo?

E haverá um reverso

da minha medalha?

E uma mortalha

que me cubra na morte?

Qual será a minha sorte?

Serei um profeta?

Um mero pateta?

Um poderoso Czar,

ainda que cheio de azar?

Um reles de um chulo,

que só sabe estar fulo

com a luta

da puta

pelo dinheiro?

Ou serei um banqueiro,

um milionário?

Posso ser um otário,

um pária divino,

desprovido de tino.

Ou até um vidente,

que vive da mente,

uma alma penada

na berma da estrada,

ou mesmo um ministro

de algo sinistro!

Posso ser tudo isso!

Mas…e se eu for um noviço,

carregado de mágoa

por não ter um cão-d´agua

com pedigree?

Cometerei hara-kiri?

Qual é, então, o meu karma?

Terei uma arma

apontada à cabeça?

E será que estou nessa,

de correr esse perigo

e ser o meu próprio inimigo?

Afinal, eu sou quem?

Um zé-ninguém?

Um bicho careta,

de vocação incorrecta?

Ou apenas um cura,

numa paróquia obscura?

E se, pelo contrário,

eu for um vigário,

um parlapatão?

Ou será que não?

Será que sou mouco,

tido por louco

e confinado a um hospício?

Ou serei um patrício,

um compadre da terra

que, depois de ir à guerra,

passou à reserva?

E será que me enerva

pensar que sou bicha,

que gosto de picha

e de andar no engate?

Se calhar o ataque

é a minha defesa!

e saberei estar à mesa

e medir o que como?

Ou serei o Rei Momo

de um qualquer carnaval?

Quem sou eu, afinal?

Será que sou místico,

ou, apenas, um dístico,

que diz, sem emenda,

que eu já estou à venda?

Serei flor que se cheire,

ou, somente, um alqueire

de grãos de poeira?

E ainda haverá quem me queira?

Não serei desprezado,

como um pobre falhado?

Talvez, isso sim,

seja o que pensa de mim,

quem me conhece.

E se só me apetece

ser um super-herói

que combate e destrói

o Mal no papel?

Ou uma criatura cruel,

um sombrio guru,

que, por Belzebu,

não tem piedade?

E qual é a minha idade?

Serei eu já velho

quando me vejo ao espelho,

ou, ainda, um bebé

que mal anda de pé?

E, mesmo sem graça,

terei uma raça?

Será que sou branco

e por isso é que manco?

Ou serei, antes, um preto

que vive num ghetto,

um diabo amarelo,

nem feio, nem belo,

ou um pele-vermelha

de uma tribo já velha?

Afinal, sou o quê?

Um parabéns-a-você?

Um ponto num i?

Um snob de um dandy?

Ou serei um espirro

saído de um esbirro

da mafia local?

Ou o Pai Natal?

Será que ainda sou virgem,

ou já não me atingem

os desejos alheios?

E onde estão os meus meios

de sobrevivência?

Será que a ciência

também explica

por que é que a genica

tanta falta me faz?

Tal como a paz

de que tanto preciso

para poder ter juízo?

Mas que raio é que eu sou?

Alguém que voou

para outra distância,

ou alguém cheio de ânsia?

Um fora-da-lei?

Um amante da grei'

Um grito do povo?

A gema de um ovo?

Um Kamikaze?

Um militante de base' Um libertino

de instinto felino?

Um anjo-da-guarda'

Uma eminência parda?

A ovelha ranhosa

de uma família vaidosa?

Será por ser magro

que eu ainda trago

comida nos dentes?

Ou serão resistentes

os termos do acordo

que fará de mim gordo?

Serei chefe de orquestra?

Uma abelha-mestra?

Uma fada-madrinha?

Um oficial da marinha?

Serei um artista

ou, antes, autista?

Um homem formoso,

ou um monstro horroroso?

Será excesso de zelo,

o pesadelo

em que, suponho,

se tornou o meu sonho?

Estarei eu à beira

de perder a estribeira

e de, agindo sem norte,

virar bobo da corte?

Ou serei um suspiro,

o estampido de um tiro

disparado por Deus,

num gesto de adeus

e de aviso que o mundo

está moribundo?

Espremi, espremi,

mas tudo o que vi,

foi, da minha memória,

brotar, inglória,

uma pinga de sangue,

uma lágrima exangue,

que me escorreu pelos dedos

e caiu nos lajedos

do firmamento!

E, nesse momento,

ouvi uma voz

que, apanhando-me a sós,

sussurrou-me baixinho:

"Não sejas mesquinho!

Não queiras ser nada!

Porque a caminhada,

e para onde ela aponta,

é tudo o que conta!"

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